Para juristas, Cid colocou os benefícios de sua delação em risco, as situações de Braga Neto, Alexandre Ramagem e Almir Garnier se mostraram complicadas e a tarefa da defesa de Bolsonaro é difícil

O avanço dos interrogatórios no Supremo Tribunal Federal (STF) revelou rachas internos, reposicionamentos estratégicos e um jogo de sobrevivência entre os réus acusados de tentativa de golpe de Estado. Em meio a versões conflitantes, silêncios calculados e tentativas de se descolar de antigos aliados, cada movimento nesta fase da ação penal ou a ser interpretado como um sinal de quem pode se fortalecer – ou se complicar ainda mais – e de quais estratégias devem ser adotadas às vésperas do voto do relator, ministro Alexandre de Moraes, e do julgamento final.
Na avaliação de criminalistas ouvidos pelo Estadão, o interrogatório de Mauro Cid, por um lado, colocou em xeque versões anteriores e acentuou a pressão sobre outros réus, especialmente Walter Braga Netto. Por outro lado, o silêncio tático de Augusto Heleno e o tom híbrido adotado por Jair Bolsonaro, que mesclou argumentos jurídicos, retórica política e confissões parciais, agravam o quadro jurídico do grupo na reta final do processo.
Para o criminalista Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM-SP, Cid teve um desempenho considerado regular durante o interrogatório. O depoimento reforçou sua posição como peça-chave da acusação, mas também expôs fragilidades na colaboração premiada, o que pode abrir margem para questionamentos futuros sobre a consistência do acordo. “Ele também adotou uma postura evasiva”, ressalta.
Crespo destaca que Cid comprometeu nomes-chave da cúpula militar e política ao afirmar que o almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, teria colocado tropas da força naval “à disposição” para um plano de ruptura institucional; ao atribuir a Braga Netto a entrega de dinheiro vivo destinado à execução da trama golpista; e ao confirmar que o próprio Bolsonaro alterou pessoalmente uma minuta de decreto de teor golpista. Por outro lado, o criminalista pontua que Cid poupou nomes como o ex-ministro da Justiça Anderson Torres e o ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno.
Embora tenha demonstrado disposição em responder às perguntas, Crespo avalia que Cid apresentou insegurança e lacunas importantes em determinados questionamentos durante o depoimento, o que sugere possível omissão de fatos relevantes – situação que pode colocar em risco os benefícios previstos em seu acordo de colaboração premiada, ainda que as provas já entregues permaneçam válidas. Levantamento do Estadão mostra que o ex-ajudante de ordens repetiu 42 vezes expressões como “não sei” ou “não me recordo” durante a oitiva. “Do ponto de vista estratégico, isso pode fragilizar o benefício negociado”, diz.
A expectativa, segundo Crespo, é que a linha de defesa nas próximas fases siga ancorada na colaboração, com Cid respondendo sempre que requisitado e buscando demonstrar que eventuais omissões não foram deliberadas, sob pena de perder os benefícios e até ser preso.
Se Cid tenta preservar a delação como trunfo, Jair Bolsonaro investe em uma estratégia de dupla camada: discurso jurídico aliado a reposicionamento político, avalia o criminalista Renato Vieira. Para ele, o ex-presidente adotou um tom mais comedido: manteve a calma, evitou confrontos diretos e, em certos momentos, chegou a pedir desculpas ao ministro Alexandre de Moraes e aos demais integrantes da Corte pelos ataques anteriores.
“Claramente seguiu orientação técnica da defesa. Ele já sabe que a absolvição é praticamente inviável, então pretende construir uma narrativa mais favorável para o cumprimento da pena, visando a prisão domiciliar”, diz.
Apesar da tentativa de adotar uma nova roupagem e de negar a intenção golpista, Vieira destaca que Bolsonaro reafirmou pontos sensíveis, como as reuniões com comandantes militares para discutir alternativas com o objetivo de reverter o resultado das eleições. Na avaliação do criminalista, essa postura configura uma espécie de confissão parcial da tentativa de golpe, complicando ainda mais sua situação jurídica.
Na mesma linha, o criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, avalia que esse trecho do depoimento agrava ainda mais a situação jurídica de Bolsonaro, por ele próprio ter itido o uso de instrumentos constitucionais com fins golpistas.
Para o jurista, essa deve ser justamente a estratégia da defesa: alegar que os atos descritos na denúncia não aram da fase de cogitação – que não é punível – e que, quando discutidos, ocorreram por meio de mecanismos previstos na Constituição, como o estado de defesa, o estado de sítio ou a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Ainda assim, Kakay pondera: “Pelas provas reunidas, não vejo como a defesa sustentar essas linhas na fase seguinte de julgamento”.
Outra frente que deve ganhar força nas próximas etapas será o ataque à validade das provas obtidas ao longo da investigação. Vieira chama atenção para a estratégia de identificar vícios processuais em fases anteriores que possam comprometer a cadeia de provas e abrir brechas para nulidades.
Um exemplo claro da atuação de Celso Vilardi, advogado de Bolsonaro, ocorreu quando, em determinado momento do interrogatório, o defensor questionou se Cid teria utilizado uma conta no Instagram para se comunicar com outros réus, o que violaria a decisão de Moraes e poderia comprometer a legalidade de provas subsequentes.
Vilardi também colocou em dúvida a voluntariedade da delação de Cid, em tentativa explícita de fragilizar os elementos obtidos via colaboração. Conhecido por sua atuação técnica nessa linha, o advogado já obteve a anulação de provas em casos emblemáticos como a Operação Lava Jato, o Mensalão e a Castelo de Areia.
General Heleno adota o silêncio, e demais réus tentam desqualificar delação de Cid
Enquanto isso, o general Augusto Heleno optou por uma estratégia de autopreservação. Para Marcelo Crespo, chamou a atenção sua postura cautelosa: recorreu ao direito constitucional ao silêncio e respondeu apenas às perguntas de seu próprio advogado. “Mesmo assim, não foi assertivo nas respostas, o que pode acabar complicando sua situação jurídica”, avalia.
Crespo entende que a linha de defesa daqui em diante deve ser demonstrar que Heleno não participou dos momentos-chave da articulação golpista, como as reuniões de dezembro de 2022 no Palácio da Alvorada, e que, se houve algum envolvimento, este se restringiu ao campo da cogitação, por meio de conversas informais, sem qualquer o concreto rumo à execução de um golpe.
Já no caso de investigados com atuação mais direta, o cenário é mais preocupante. Crespo aponta que Braga Netto, Alexandre Ramagem e Almir Garnier estão em posição jurídica mais delicada. Apesar de terem adotado um tom mais incisivo de negação durante os interrogatórios, as provas contra eles são robustas e os colocam no centro da engrenagem golpista.
Ele aponta que, diante desse cenário, a estratégia parece ser a mesma: desqualificar a delação de Mauro Cid, como já tentou fazer Braga Netto. “Não me parece que a situação jurídica desses envolvidos melhorou com suas declarações. Pelo contrário, entendo que os interrogatórios serviram para decretar que deliberações e conversas sobre ‘alternativas à sucessão’ do Lula eram uma realidade”, diz Crespo.
Estadão